
Empoleirado no último dos degraus, quando espreitava pela janela o Dr. Fischelson podia olhar para dois mundos. Acima dele estavam os céus, densamente polvilhados de estrelas. O Dr. Fischelson nunca estudara seriamente astronomia mas conseguia distinguir os planetas, aqueles corpos celestes que, como a terra, giravam em torno do sol, e as estrelas fixas, elas próprias sóis distantes cuja luz demora centenas ou mesmo milhares de anos a chegar até nós. Ele reconhecia as constelações que marcam o caminho da terra pelo espaço e aquela moldura nebulosa, a Via Láctea. O Dr. Fischelson tinha um pequeno telescópio que comprara na Suíça quando lá estudara e gostava particularmente de ver a lua através dele. Podia distinguir claramente na superfície da lua os vulcões banhados pela luz do sol e as crateras escuras e sombrias. Gostava de observar aquelas fendas e gretas. Pareciam-lhe simultaneamente distantes e próximas, ao mesmo tempo substanciais e insubstanciais. De vez em quando via uma estrela cadente traçando um arco largo de um lado ao outro dos céus até desaparecer, deixando atrás de si uma cauda flamejante. O Dr. Fischelson sabia então que um meteorito atingira a nossa atmosfera e que, talvez, um fragmento seu tinha ido parar ao oceano ou caído no deserto, ou mesmo em alguma região habitada. Aos poucos, as estrelas que tinham aparecido atrás do telhado do Dr. Fischelson subiam até brilharem por cima das casas do outro lado da rua. Sim, quando o Dr. Fischelson olhava para os céus ele tinha noção dessa extensão infinita que é, de acordo com Spinoza, um dos atributos de Deus. O Dr. Fischelson sentia-se confortado ao saber que, apesar de ser apenas um homem débil e fraco ele era mesmo assim uma parte do cosmos, feito da mesma matéria dos corpos celestes, uma permutação da Substância infinita absoluta; na medida em que era uma parte da Divindade, ele sabia que não podia ser destruído. Nesses momentos, o Dr. Fischelson sentia o Amor Dei Intellectualis que é, segundo o filósofo de Amsterdã, a mais elevada perfeição da mente. O Dr. Fischelson respirou fundo, levantou a cabeça o mais alto que o seu apertado colarinho permitia e sentiu-se literalmente a rodopiar na companhia da terra, do sol, das estrelas, da Via Láctea e da infinidade de galáxias conhecidas apenas do pensamento infinito. As suas pernas tornaram-se leves, como que desafiando a gravidade, forçando-o a agarrar com força o parapeito da janela, não fosse ele voar para a eternidade.Quando o Dr. Fischelson se cansava de observar os céus, o seu olhar descia até à Rua do Mercado, lá em baixo. Dali podia ver uma longa faixa desde o mercado de Yanash até à Rua do Ferro, com as lâmpadas dos candeeiros de gás a formarem uma fileira de pontos luminosos. Fumo subia pelas chaminés nos telhados negros de estanho; os padeiros aqueciam os fornos e aqui e ali fagulhas luzentes misturavam-se com o fumo preto. A rua nunca era tão barulhenta e apinhada como nas noites de Verão. Ladrões, prostitutas, apostadores, jogadores de cartas e receptadores vadiavam na praça que vista de cima parecia uma pretzel polvilhada de sementes de sésamo. Os rapazes novos riam desbragadamente e as raparigas guinchavam. Um vendedor de melancias gritava com voz selvagem, e a longa faca que ele usava para cortar a fruta pingava um sumo cor de sangue. Às vezes a rua ficava ainda mais agitada. Carros de bombeiros, com as pesadas rodas a tinir, chegavam a correr, puxados por robustos cavalos negros arreados pelos ajustes. A seguir vinha a ambulância com a sirene aos berros. Depois alguns rufias desatavam à pancada entre eles e a polícia tinha de ser chamada. Um transeunte era roubado e corria a gritar por socorro. Algumas carroças carregadas de lenha tentavam passar para o pátio da padaria, mas os cavalos não conseguiam levantar as rodas sobre o passeio e os carroceiros insultavam os animais e batiam-lhes com o chicote. Faíscas saltavam-lhes dos cascos. Já há muito que passava das sete, que era a hora de lei para fechar as lojas, mas na verdade era agora que o comércio começava. Os fregueses eram discretamente conduzidos pela porta das traseiras. Na rua, os polícias russos, subornados no princípio do mês, nada viam. Os vendedores continuavam a apregoar os seus produtos, uns tentando gritar mais alto que os outros.“Oiro, oiro, oiro”, berrava uma mulher que vendia laranjas podres.“Açúcar, açúcar, açúcar”, grasnava um vendedor de ameixas demasiado maduras.“Cabeças, cabeças, cabeças”, rugia um rapaz que vendia cabeças de peixe.Pela janela da casa de estudo dos hassidim, do outro lado da rua, o Dr. Fischelson podia ver rapazes com longos caracóis no cabelo perto das orelhas, balançando sobre pesados volumes sagrados, fazendo caretas e estudando em voz alta, quase a cantar. Carniceiros, estivadores e vendedores de fruta bebiam cerveja em baixo, na taberna. Da porta aberta da taberna jorrava vapor como se fosse de uma sauna e lá de dentro vinha o som de música alta. À entrada da taberna rameiras tentavam atirar-se a soldados bêbados e a operários a caminho de casa. Alguns carregavam fardos de lenha nos ombros, fazendo recordar ao Dr. Fischelson os penitentes condenados a acender os seus próprios fogos no Inferno. Grafonolas fanhosas raspavam canções que se ouviam pelas janelas. A liturgia de Yom Kippur alternava com as melodias burlescas do vaudeville.O Dr. Fischelson espreitou para o caos meio iluminado da rua e aguçou o ouvido. Ele sabia que o comportamento da populaça era a própria antítese da razão. Estas pessoas estavam mergulhadas nas mais inúteis das paixões, ébrios de emoções e, segundo Spinoza, emoção nunca era boa. Em vez do prazer que buscavam, tudo o que conseguiam ganhar era doenças e prisão, vergonha e o sofrimento que resultava da ignorância. Até os gatos que vadiavam nos telhados pareciam mais agitados e selvagens do que aqueles de outras partes da cidade. Miavam com as vozes de mulheres em parto e como demónios subiam pelas paredes e saltavam pelas varandas e beirais. Um desses gatos parou sobre a janela do Dr. Fischelson e soltou um guincho que o fez estremecer. O doutor desceu da janela e, agarrando uma vassoura, sacudiu-a em frente dos brilhantes olhos verdes do negro animal. “Vá, embora seu selvagem ignorante!” – e bateu com o cabo da vassoura no telhado até que o gato fugiu.
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