sábado, 13 de outubro de 2007

Como se inventaram os almanaques (Machado de Assis)


Come-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias poentas. Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os almanaques.
Sabem que o Tempo é, desde que nasceu, um velho de barbas brancas. Os poetas não lhe dão outro nome: o velho Tempo. Ninguém o pintou de outra maneira. E como há quem tome liberdades com os velhos, uns batem-lhe na barriga (são os patuscos), outros chegam a desafiá-lo; outros lutam com ele, mas o diabo vence-os a todos; é de regra.
Entretanto, uma coisa é barba, outra é coração. As barbas podem ser velhas e os corações novos; e vice-versa: há corações velhos com barbas recentes. Não é regra, mas dá-se. Deu-se com o Tempo. Um dia o Tempo viu uma menina de quinze anos, bela como a tarde, risonha como a manhã, sossegada como a noite, um composto de graças raras e finas, e sentiu que alguma coisa lhe batia do lado esquerdo. Olhou para ela e as pancadas cresceram. Os olhos da menina, verdadeiros fogos, faziam arder os dele só com fitá-los.
- Que é isto? murmurou o velho.
E os beiços do Tempo entraram a tremer e o sangue andava mais depressa, como cavalo chicoteado, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas olhou para o oceano, vasto espelho, e achou-se velho. Amaria aquela menina a um varão tão idoso? Deixou o mar, deixou a bela, e foi pensar na batalha de Salamina.
As batalhas velhas eram para ele como para nós os velhos sapatos. Que lhe importava Salamina? Repetiu-a de memória, e por desgraça dele, viu a mesma donzela entre os combatentes, ao lado de Temístocles. Dias depois trepou a um píncaro, o Chimborazo; desceu ao deserto de Sinai; morou no Sol, morou na Lua; em toda parte lhe aparecia a figura de bela menina de quinze anos. Afinal ousou ir ter com ela.
- Como te chamas, linda criatura?
- Esperança é o meu nome.
- Queres amar-me?
- Tu estás carregado de anos, respondeu ela; eu estou na flor deles. O casamento é impossível. Como te chamas?
- Não te importe o meu nome; basta saber que te posso dar todas as pérolas de Golconda...
- Adeus!
- Os diamantes de Ofir...
- Adeus!
- As rosas de Saarão...
- Adeus! adeus!
- As vinhas de Engaddi...
- Adeus! adeus! adeus! Tudo isso há de ser meu um dia; um dia breve ou longe, um dia...
Esperança fugiu. O Tempo ficou a olhar, calado, até que a perdeu de todo. Abriu a boca para amaldiçoá-la, mas as palavras que lhe saiam eram todas de benção; quis cuspir no lugar em que a donzela pousara os pés, mas não pôde impedir-se de beijá-lo.
Foi por essa ocasião que lhe acudiu a idéia do almanaque. Não se usavam almanaques. Vivia-se sem eles; negociava-se, adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros. Conhecia-se a marcha do sol e da lua; contavam-se os meses e os anos; era, ao cabo, a mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestígios no ar.
- Se eu achar um modo de trazer presente aos olhos os dias e os meses, e o reproduzir todos os anos, para que ela veja palpavelmente ir-se-lhe a mocidade...
Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não tem ainda hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.
- Agora, sim, disse Esperança pegando no folheto que achou na horta; agora já me não engano nos dias das amigas. Irei jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas folhas, com sinais de cor os dias escolhidos.
Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas também as matronas, e os velhos e os rapazes, juizes, sacerdotes, comerciantes, governadores, fâmulos; era moda trazer o almanaque na algibeira. Um poeta compôs um poema atribuindo a invenção da obra às Estações, por ordem de seus pais, o Sol e a Lua; um astrônomo,. ao contrário, provou que os almanaques eram destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam escritas as línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planetas. A explicação dos teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da própria terra, cuias palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem, imprimiram-se no próprio ar, convertido em folhas de papeI, graças... Não continuou; tantas e tais eram as sentenças, que a de Esperança foi a mais aceita do povo.
- Eu creio que o almanaque é o almanaque, dizia ela rindo. Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que trazia o almanaque com mil cuidados, para consultá-lo no ano seguinte, ficou espantada de ver cair à noite outra chuva de almanaques. Toda a terra amanheceu alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram naturalmente os velhos. Ano findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que Esperança contou vinte e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.
Nunca os dias pareceram correr tão depressa. Voavam as semanas, com elas os meses, e, mal o ano começava, estava logo findo. Esse efeito entristeceu a terra. A própria Esperança, vendo que os dias passavam tão velozes, e não achando marido, pareceu desanimada; mas foi só um instante. Nesse mesmo instante apareceu-lhe o Tempo.
- Aqui estou, não deixes que te chegue a velhice... Ama-me...
Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e deixou-se estar solteira. Há de vir o noivo, pensou ela.
Olhando-se ao espelho, viu que mui pouco mudara. Os vinte e cinco almanaques quase lhe não apagaram a frescura dos quinze. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho Tempo, cada vez mais afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por ano, até que ela chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.
Eram já vinte almanaques; toda a gente começava a odiá-los, menos Esperança, que era a mesma menina das quinze primaveras. Trinta almanaques, quarenta,. cinqüenta, sessenta, cem almanaques; velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas e duras. A própria Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma ruga.
- Uma ruga! uma só!
Outras vieram, à medida dos almanaques. Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um pico de neve, a cara um mapa de linhas. Só o coração era verde como acontecia ao Tempo; verdes ambos, eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia, o Tempo desceu a ver a bela Esperança; achou-a anciã, mas forte, com um perpétuo riso nos lábios.
- Ainda assim te amo, e te peço... disse ele.
Esperança abanou a cabeça; mas, logo depois, estendeu-lhe a mão.
- Vá lá, disse ela; ambos velhos, não será longo o consórcio.
- Pode ser indefinido.
- Como assim?
O velho Tempo pegou da noiva e foi com ela para um espaço azul e sem termos, onde a alma de um deu à alma de outro o beijo da eternidade. Toda a criação estremeceu deliciosamente. A verdura dos corações ficou ainda mais verde.
Esperança, daí em diante, colaborou nos almanaques. Cada ano, em cada almanaque, atava Esperança uma fita verde. Então a tristeza dos almanaques era assim alegrada por ela; e nunca o Tempo dobrou urna semana que a esposa não pusesse um mistério na semana seguinte. Deste modo todas elas foram passando, vazias ou cheias, mas sempre acenando com alguma coisa que enchia a alma dos homens de paciência e de vida.
Assim as semanas, assim os meses, assim os anos.
E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida.

O homem que sabia javanês (Lima Barreto)

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo !
- Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado !
- Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!
- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
- Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.
À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.
Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:
- Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
Por aí o homem interrompeu-me:
- Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?
Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:
- É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
- Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?
Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.
Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antigüidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.
- Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.
- Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio?
- Não, sou de Canavieiras.
- Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo, - Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. - Onde fez os seus estudos?
- Em São Salvador.
- Em onde aprendeu o javanês? indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.
- E ele acreditou? E o físico? perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
- Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
- Bem, fez o meu amigo, continua.
- O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
- Então está disposto a ensinar-me javanês?
- A resposta saiu-me sem querer: - Pois não.
- O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...
- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... ? .
- O que eu quero, meu caro senhor....
- Castelo, adiantei eu.
- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me 1embrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava !"
O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens !...
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos !
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. - "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de secção: "Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!"
Os chefes de secção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"
O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!"
Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...
- Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.
- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.
- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na secção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a secção do tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.
Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
- É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
- Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser ?
- Que?
- Bacteriologista eminente. V amos?
- Vamos.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O menino experimental (Murilo Mendes)




O menino experimental come as nádegas da avó e atira os ossos ao cachorro.
O menino experimental futuro inquisidor devora o livro e soletra o serrote.
O menino experimental não anda nas nuvens. Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a torquês. Dança com eles. Conversa-os.
O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros.
O menino experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de fenomenologia.
O menino experimental confessa-se ateu e à-toa.
O menino experimental é desmamado no primeiro dia. Despreza Rômulo e Remo. Acha a loba uma galinha. No tempo do ovo pré-natal gritava: “Champagne, mamãe! Depressa!”
O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua zona, só com a roupa do corpo e amordaçado.
O menino experimental repele as propostas da prima de dezoito anos chamando-a de bisavó.
O menino experimental escondendo os pincéis do pintor e trancando-o no vaso sanitário, obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse.
O menino experimental ensina a Vamp a amar. Dorme com o radar debaixo da cama.
O menino experimental, dos animais só admite o tigre e o piloto do bombardeio. Deixa o cão mesmo feroz e o piloto civil às pulgas.
O menino experimental benze o relâmpago.
O menino experimental antefilma o acontecimento agressivo, o Apocalipse, fato do dia.
O menino experimental festeja seu terceiro aniversário convidando Jean Genet e Sofia Loren para jantar. Espetados na mesa três punhais acesos.
O menino experimental despede a televisão, “brinquedo para analfabetos, surdos, mudos, doentes, antinietzsches, padres, podres, croulants”.
O menino experimental atira uma granada em forma de falo na mãe de Cristóvão Colombo, sepultado nas Américas.

Ismália (Alphonsus de Guimarães)

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar.

O Spinoza da Rua do Mercado (Isaac Bashevis Singer)


Empoleirado no último dos degraus, quando espreitava pela janela o Dr. Fischelson podia olhar para dois mundos. Acima dele estavam os céus, densamente polvilhados de estrelas. O Dr. Fischelson nunca estudara seriamente astronomia mas conseguia distinguir os planetas, aqueles corpos celestes que, como a terra, giravam em torno do sol, e as estrelas fixas, elas próprias sóis distantes cuja luz demora centenas ou mesmo milhares de anos a chegar até nós. Ele reconhecia as constelações que marcam o caminho da terra pelo espaço e aquela moldura nebulosa, a Via Láctea. O Dr. Fischelson tinha um pequeno telescópio que comprara na Suíça quando lá estudara e gostava particularmente de ver a lua através dele. Podia distinguir claramente na superfície da lua os vulcões banhados pela luz do sol e as crateras escuras e sombrias. Gostava de observar aquelas fendas e gretas. Pareciam-lhe simultaneamente distantes e próximas, ao mesmo tempo substanciais e insubstanciais. De vez em quando via uma estrela cadente traçando um arco largo de um lado ao outro dos céus até desaparecer, deixando atrás de si uma cauda flamejante. O Dr. Fischelson sabia então que um meteorito atingira a nossa atmosfera e que, talvez, um fragmento seu tinha ido parar ao oceano ou caído no deserto, ou mesmo em alguma região habitada. Aos poucos, as estrelas que tinham aparecido atrás do telhado do Dr. Fischelson subiam até brilharem por cima das casas do outro lado da rua. Sim, quando o Dr. Fischelson olhava para os céus ele tinha noção dessa extensão infinita que é, de acordo com Spinoza, um dos atributos de Deus. O Dr. Fischelson sentia-se confortado ao saber que, apesar de ser apenas um homem débil e fraco ele era mesmo assim uma parte do cosmos, feito da mesma matéria dos corpos celestes, uma permutação da Substância infinita absoluta; na medida em que era uma parte da Divindade, ele sabia que não podia ser destruído. Nesses momentos, o Dr. Fischelson sentia o Amor Dei Intellectualis que é, segundo o filósofo de Amsterdã, a mais elevada perfeição da mente. O Dr. Fischelson respirou fundo, levantou a cabeça o mais alto que o seu apertado colarinho permitia e sentiu-se literalmente a rodopiar na companhia da terra, do sol, das estrelas, da Via Láctea e da infinidade de galáxias conhecidas apenas do pensamento infinito. As suas pernas tornaram-se leves, como que desafiando a gravidade, forçando-o a agarrar com força o parapeito da janela, não fosse ele voar para a eternidade.Quando o Dr. Fischelson se cansava de observar os céus, o seu olhar descia até à Rua do Mercado, lá em baixo. Dali podia ver uma longa faixa desde o mercado de Yanash até à Rua do Ferro, com as lâmpadas dos candeeiros de gás a formarem uma fileira de pontos luminosos. Fumo subia pelas chaminés nos telhados negros de estanho; os padeiros aqueciam os fornos e aqui e ali fagulhas luzentes misturavam-se com o fumo preto. A rua nunca era tão barulhenta e apinhada como nas noites de Verão. Ladrões, prostitutas, apostadores, jogadores de cartas e receptadores vadiavam na praça que vista de cima parecia uma pretzel polvilhada de sementes de sésamo. Os rapazes novos riam desbragadamente e as raparigas guinchavam. Um vendedor de melancias gritava com voz selvagem, e a longa faca que ele usava para cortar a fruta pingava um sumo cor de sangue. Às vezes a rua ficava ainda mais agitada. Carros de bombeiros, com as pesadas rodas a tinir, chegavam a correr, puxados por robustos cavalos negros arreados pelos ajustes. A seguir vinha a ambulância com a sirene aos berros. Depois alguns rufias desatavam à pancada entre eles e a polícia tinha de ser chamada. Um transeunte era roubado e corria a gritar por socorro. Algumas carroças carregadas de lenha tentavam passar para o pátio da padaria, mas os cavalos não conseguiam levantar as rodas sobre o passeio e os carroceiros insultavam os animais e batiam-lhes com o chicote. Faíscas saltavam-lhes dos cascos. Já há muito que passava das sete, que era a hora de lei para fechar as lojas, mas na verdade era agora que o comércio começava. Os fregueses eram discretamente conduzidos pela porta das traseiras. Na rua, os polícias russos, subornados no princípio do mês, nada viam. Os vendedores continuavam a apregoar os seus produtos, uns tentando gritar mais alto que os outros.“Oiro, oiro, oiro”, berrava uma mulher que vendia laranjas podres.“Açúcar, açúcar, açúcar”, grasnava um vendedor de ameixas demasiado maduras.“Cabeças, cabeças, cabeças”, rugia um rapaz que vendia cabeças de peixe.Pela janela da casa de estudo dos hassidim, do outro lado da rua, o Dr. Fischelson podia ver rapazes com longos caracóis no cabelo perto das orelhas, balançando sobre pesados volumes sagrados, fazendo caretas e estudando em voz alta, quase a cantar. Carniceiros, estivadores e vendedores de fruta bebiam cerveja em baixo, na taberna. Da porta aberta da taberna jorrava vapor como se fosse de uma sauna e lá de dentro vinha o som de música alta. À entrada da taberna rameiras tentavam atirar-se a soldados bêbados e a operários a caminho de casa. Alguns carregavam fardos de lenha nos ombros, fazendo recordar ao Dr. Fischelson os penitentes condenados a acender os seus próprios fogos no Inferno. Grafonolas fanhosas raspavam canções que se ouviam pelas janelas. A liturgia de Yom Kippur alternava com as melodias burlescas do vaudeville.O Dr. Fischelson espreitou para o caos meio iluminado da rua e aguçou o ouvido. Ele sabia que o comportamento da populaça era a própria antítese da razão. Estas pessoas estavam mergulhadas nas mais inúteis das paixões, ébrios de emoções e, segundo Spinoza, emoção nunca era boa. Em vez do prazer que buscavam, tudo o que conseguiam ganhar era doenças e prisão, vergonha e o sofrimento que resultava da ignorância. Até os gatos que vadiavam nos telhados pareciam mais agitados e selvagens do que aqueles de outras partes da cidade. Miavam com as vozes de mulheres em parto e como demónios subiam pelas paredes e saltavam pelas varandas e beirais. Um desses gatos parou sobre a janela do Dr. Fischelson e soltou um guincho que o fez estremecer. O doutor desceu da janela e, agarrando uma vassoura, sacudiu-a em frente dos brilhantes olhos verdes do negro animal. “Vá, embora seu selvagem ignorante!” – e bateu com o cabo da vassoura no telhado até que o gato fugiu.

É magoa (Ana Carolina)



É mágoa.
Já vou dizendo de antemão.
Se eu encontrar com você,
Tô com três pedras na mão.
Eu só queria distância da nossa distância.
Saí por aí procurando uma contramão.
Acabei chegando na sua rua.
Na dúvida qual era a sua janela.
Lembrei que era pra cada um ficar na sua.
Mas é que até a minha solidão tava na dela.
Atirei uma pedra na sua janela.
E logo correndo me arrependi.
Foi o medo de te acertar,
Mas era pra te acertar
E disso eu quase me esqueci.
Atirei outra pedra na sua janela,
Uma que não fez o menor ruído;
Não quebrou, não rachou, não deu em nada.
E eu pensei: talvez você tenha me esquecido.
Eu só não consegui foi te acertar o coração.
Porque eu já era o alvo de tanto que eu tinha sofrido.
Aí nem precisava mais de pedra.
Minha raiva quase transpassa a espessura do seu vidro.
É mágoa.
O que eu choro é água com sal.
Se der um vento é maremoto.
Se eu for embora não sou mais eu.
Água de torneira não volta,
E eu vou embora.
Adeus.

A menina ruiva (Clarice Lispector)


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.Mas ambos eram comprometidos.Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.